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sábado, 7 de maio de 2011

O Milagre de Berna: a História da Copa de 1954

A família milagrosa de Berna
Fagner dos Santos[1]

O Milagre de Berna (Das Wunder von Bern) é uma produção alemã, lançada em 2003, dirigida e escrita por Sönke Wortmann. Embasa-se na histórica vitória de 3x2 da seleção germânica na final da copa de 1954 para contar tanto uma história de superação de uma seleção sem estrelas, porém unida, quanto o retorno da vida em família de um país recém-destroçado pela Segunda Guerra Mundial. Em especial, além de uma campanha claudicante e resultados contestáveis, uma atuação redentora contra a sensação da competição, a Hungria, de Frenc Puskas, de quem havia perdido por um humilhante 8x3 na primeira fase da competição, traz o retorno da alegria da população ao ver a seleção nacional ganhar o mundo agora em um campo mais honroso que o de batalha: o do futebol.
O filme que levou mais de três milhões de espectadores aos cinemas alemães, contou com a sorte de ter sido lançado em um momento muito favorável. Mesmo que tenha sido parte do movimento de preparação da população para a copa de 2006, que seria sediada pela segunda vez na Alemanha, ninguém acreditava que, em 2002, a seleção de camisas brancas e calções negros seria finalista em uma situação similar àquela em um torneio mundial – ou seja, como “zebra”, contra uma seleção muito poderosa. Além disso, o falecimento do capitão daquela seleção, Fritz Walter, durante a Copa do Mundo disputada no Japão/Coréia, também ajudou a reviver aquela história de superação de uma Alemanha recém-saída da destruição da Segunda Guerra para o seu primeiro título mundial.
Essa intenção de mobilizar os torcedores para uma participação em massa no torneio ficou manifesta principalmente na escolha técnica de ambientação histórica do filme. A película tentou emular os fatos embasando suas reconstituições com os pedaços disponíveis da transmissão original de 1954 sem, contudo, deixar de tomar algumas licenças. Não houve reaproveitamento das cenas originais, mas composições ensaiadas dos lances, o que levou a algumas jogadas que, completamente fora de contexto, em alguns momentos fabricaram a impressão que a Alemanha, a partir do fervor de seus torcedores depois de instaurada a desvantagem de dois gols no placar, passou a esbanjar técnica. Um exemplo marcante disso foi o momento em que um zagueiro, sozinho, dá uma “chaleira” sobre si e passa para o seu colega matar no peito e sair jogando. O vídeo oficial dessa Copa do Mundo mostra que, na verdade, foi o recurso de um jogador que, passando da bola, se recupera, em uma jogada que aliou a sorte com a técnica, mas que contava com mais dois jogadores húngaros que passaram errado após já ter praticamente se livrado do defensor.
Outro ponto interessante nas “liberdades” tomadas pelos autores é a maior valorização de Helmut Rahn em relação a Fritz Walter, capitão da equipe. Após o final da Copa do Mundo, os alemães se renderam a Walter e o exaltaram como o “patrão” da seleção, muito em função de ser a voz do técnico como liderança entre os jogadores. A obra mostra esses detalhes, principalmente ao encenar os passeios que ele fazia ao lado do treinador, Sepp Herberger, onde discutiam táticas e a escalação para a próxima partida – fruto de uma cena do filme oficial da Copa que mostra os dois andando lado-a-lado. Porém, a importância dada no filme a Rahn, autor de dois gols na final e outros importantes durante a competição, parece ser como uma recompensa tardia a um craque deixado de lado pela memória da bola em relação à figura de Walter, para muitos, o maior responsável por colocar o “chefe” no espírito da seleção e do grupo[2].
Essa escolha também evidencia uma alteração dos valores no futebol na virada para o século XXI. Aos poucos sai de cena o “futebol total” da Holanda, que valoriza o coletivo e o esforço em função do esquema tático e começa a ganhar força a figura do “diferencial técnico”, um jogador capaz de desequilibrar a partida, mesmo que sem muita disciplina ou espírito de equipe. De fato, Rahn, criticado no filme durante o intervalo por ter chutado uma bola que teria muito mais chances de entrar no gol se fosse cruzada para um companheiro (cena que não foi dramatizada, mas está no filme oficial), pode ser encarado dessa forma. Frente à dificuldade de furar a defesa de uma equipe que marcava muito a saída de bola, a Alemanha fugiu de suas características ao longo da competição e, não conseguindo entrar com seus passes curtos na área, viu em seu camisa 12 o desafogo ao finalizar mais de cinco vezes de fora da área. O último gol do jogo saiu justamente dessa insistência: o único chute disparado de perna esquerda surpreendeu o goleiro e os marcadores e atingiu a meta, decretando a vitória dos alemães.
Mesmo assim, a imagem da seleção unida em torno de um sábio técnico e as modernas técnicas do futebol também ganha destaque nesta obra. O primeiro ponto principal é a preparação física que teria padronizado a força da equipe. O segundo foi o advento dos jogos de travas atarraxáveis para chuteiras que possibilitavam maior estabilidade ao jogador em qualquer tipo de terreno. Esses foram apontados, indiretamente, ao longo do filme, como responsáveis pela igualdade encenada na disputa quando a chuva tornou o gramado mais pesado[3]. Há, inclusive, a cena da chuva que surge em meio a um dia ensolarado, mostrando que a única esperança que tinham de fazer um bom jogo estava renovada com a mudança repentina de condições do gramado em Berna.
Porém, a paridade foi evidenciada apenas na pequena diferença no placar. O goleiro Toni Turek foi a figura do jogo, realizando um milagre no primeiro tempo e outros três (22”, 33” e 45”) na segunda etapa. Embora a reconstituição da narração faça justiça ao goleiro alemão, a dramatização do filme não faz jus a complexidade das defesas que ele realizou. Além disso, um zagueiro tirou a bola da direção do gol, a um passo da linha fatal, com Turek já vencido por Puskas aos 10” e uma vez em cada etapa a bola explodiu na trave alemã. A Alemanha criou lances de perigo apenas no primeiro tempo, forçando o arqueiro húngaro a uma defesa incrível e acertando a trave uma vez. A Hungria parecia, pois, mais bem preparada para aguentar o gramado encharcado e a velocidade impressionante da partida durante os noventa minutos. Se o futebol fosse um esporte lógico, o segundo tempo daquele jogo teria outro vencedor.
Outra escolha da direção do filme digna de nota foi a opção por não mostrar o lance anulado do gol de empate da Hungria, quando o auxiliar marcou impedimento de Puskas aos 42” da segunda etapa. O goleiro húngaro reclamou rispidamente com o árbitro antes de parabenizar os alemães depois do apito final, mas, no momento da anulação, não houve muitos protestos. Porém, esse não foi o único lance polêmico desta edição da Copa: na fase de grupos houve um pênalti assinalado para a seleção da França que, embora ficasse marcado na posteridade pela locução do vídeo oficial do evento, não despertou maiores protestos dos jogadores no momento da marcação. Ou seja, a ausência de pressão dos jogadores ao juiz durante a partida parece ser mais uma questão de respeito do que a concordância com o seu posicionamento, o que torna difícil aceitar que a cena da anulação não tenha sido posta no filme.
Como o futebol não pode ser descolado da sociedade, diversos pontos interessantes podem ser traçados com a história paralela do filme sobre a reorganização da vida na Alemanha do pós-guerra. Porém, a direção do filme acabou se debruçando mais sobre o papel da família na sociedade. Richard, o pai que mantinha a família Lubanski, protagonista da história, foi para o front da Segunda Guerra e, ao final, com a derrota, foi feito prisioneiro dos soviéticos, passando por trabalhos forçados, fome e maus tratos. Christa, a matriarca, precisou, assim, garantir o sustento da família de uma maneira alternativa, abrindo um restaurante e colocando os filhos para trabalhar desde novos. Onze anos depois, quando retorna, Richard precisa se adaptar aos traumas da guerra e a essa nova organização familiar, com mais independência para a mulher. Além disso, ter a aceitação dos filhos já desacostumados com o tempo e as noções de respeito, hierarquia e disciplina que ficaram congelados na memória do ex-soldado.
A relação mais significativa foi representada no confronto de gerações entre Bruno, o filho mais velho, e Richard. O primeiro tornou-se músico e tocava no restaurante da família a nova sonoridade das bandas de rock dos Estados Unidos. Este personagem traz, acima de tudo, a novidade, caracterizada também com uma rebeldia contra a geração precedente, mesmo que incoerentemente. Ao mesmo tempo em que toca os sucessos de Chuck Berry e do capitalismo estadunidense, diz-se admirador das doutrinas da Alemanha Oriental e seu comunismo igualitário, onde há empregos para todos e todos ganham da mesma forma. Por outro lado, atira nas costas de seu pai a responsabilidade pela guerra, considerando-o um nazista. Richard, porém, não se coloca como um nazista, mas como alguém que cumpriu o seu dever mesmo sem concordar. O momento desse diálogo é bastante rápido, mas dá uma resposta provisória e prévia a críticas que sempre são feitas à falta de referências dos alemães ao período nazista.
Como outra faceta das famílias do pós-guerra o filme apresenta os perigos da ausência do pai e a busca de alguém para fazer o papel de tutor. Isso é escancaradamente colocado na relação entre o filho mais novo, Matthias, e Rahn, “o chefe”. A posição cristã-ocidental de orientação desta instituição foi mostrada na imperícia do jogador em reconhecer as reais virtudes de seu pupilo, ao estimulá-lo a ser atacante como ele. O “verdadeiro” pai, mesmo sem conhecer o garoto, nascido depois que ele foi para o front é quem, observando, aconselha-o a mudar para a zaga, fazendo-o tornar-se respeitado pelos seus amigos. Além disso, recuperou a sua posição de herói ao levar o garoto à final do campeonato, depois de uma série de deslizes. Apenas à sabedoria do pai, que reconquistava a sua família aprendendo a ceder aos novos tempos, isto seria possível.
Da mesma forma, Sepp Herberger levava a sua seleção como uma grande família. A cobrança sábia e na medida certa, bem como o carisma nas entrevistas ao desarmar as perguntas mais capciosas nos momentos de crise, defendendo o time de qualquer culpa nos resultados, mostram um devir de comportamento paterno personalizado na conversa despropositada com a faxineira do hotel suíço que, com a sua sabedoria de mãe, aconselha o pai a ser menos severo com o seu filho mais travesso, Helmuth Rahn, recém-descoberto “de porre” às portas da concentração. E é com a missão de “irmão mais velho” que Fritz Walter é colocado no mesmo quarto e busca, com a promessa de comprometimento, convencer o treinador a não sacrificar um de seus melhores jogadores por indisciplina. Em suma, a mensagem da família estruturada e tradicional é passada à exaustão, durante todo o filme.
Se, por um lado, a preocupação com a coreografia dos lances originais da Copa da Suíça, a reconstituição do estádio já inexistente de Berna e a qualidade da ambientação foram justamente exaltados pela crítica no seu lançamento, O Milagre de Berna assume com toda a sua força o papel de propaganda da Copa na Alemanha quando mostra a comemoração do título. Abraços calorosos, muitos gritos e uma festa digna de uma Budesliga repleta de latinos da atualidade podem ser conferidos na tela após o apito do juiz, contrastando muito com o que é visto no filme original da FIFA. Até mesmo o gesto de erguer a taça sobre a cabeça, que será feito pela primeira vez quatro anos mais tarde por Bellini, capitão da seleção Brasileira, na Suécia, foi enxertado na comemoração por ter se tornado marca registrada das grandes conquistas da atualidade.




[1] Mestre em História pela UFRGS. agks@terra.com.br
[2] Os termos “chef” e “boss”, ambos aceitos na língua alemã, foram aqui traduzidos por “patrão” e “chefe” para respeitar a versão brasileira do filme. Helmut Rahn era conhecido como “boss” e Fritz Walter como “chef”.
[3] Hoje em dia, quando o tempo está chuvoso e o gramado está pesado, na Alemanha, define-se esse tipo de clima como Tempo Fritz Walter (Fritz-Walter-Wetter).


A copa em números:



Seleções participantes da Copa do Mundo de 1954 na Suíça
Alemanha Ocidental | Áustria | Bélgica | Brasil | Coreia do Sul | Escócia | França | Hungria | Inglaterra | Iugoslávia | Itália | México | Suíça | Tchecoslováquia | Turquia | Uruguai

Seleções participantes: 16

Tabela e jogos da Copa do Mundo 1954

Primeira fase:
Grupo 1 - 1o Brasil, 2o Iugoslávia, 3o França, 4o México.
Grupo 2 - 1o Hungria, 2o Alemanha Ocidental, 3o Turquia, 4o Coréia do Sul.
Grupo 3 - 1o Uruguai, 2o Áustria, 3o Tchecoslováquia, 4o Escócia.
Grupo 4 - 1o Inglaterra, 2o Suíça, 3o Itália, 4o Bélgica.

Quartas-de-final:
Alemanha Ocidental 2x0 Iugoslávia
Áustria 7x5 Suíça
Uruguai 4x2 Inglaterra
Hungria 4x2 Brasil

Semi-finais:
Hungria 4x2 Uruguai
Alemanha Ocidental 6x1 Áustria

3o Lugar
Áustria 3x1 Uruguai


Final:
Alemanha Ocidental 3x2 Hungria

Local: Wankdorf Stadium, Berna – Suíça

Árbitro: William Ling (Inglaterra)

Escalação da Alemanha Ocidental:
Toni Turek,
Werner Kohlmeyer,
Horst Eckel,
Jupp Posipal,
Karl Mai,
Werner Liebrich,
Helmut Rahn,
Max Morlock,
Ottmar Walter,
Fritz Walter e
Hans Schaefer
Técnico: Sepp Herberger

Escalação da Hungria:
Gyula Grosics,
Jeno Buzanszki,
Gyula Lorant,
Mihaly Lantos,
Jozsef Bozsik,
Jozsef Zakarias,
Sandor Kocsis,
Nandor Hidegkuti,
Ferenc Puskas,
Zoltan Czibor e
Mihaly Toth
Técnico: Gusztav Sebes




Público: 60.000

Gols: Primeiro Tempo - Puskás (6 minutos) | Czibor (8 minutos) | Morlock (10 minutos) | Rahn (18 minutos) | Segundo Tempo - Rahn (39 minutos)

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