Olímpiadas em Porto Alegre?
Porto Alegre e o Esporte:
Civilização e Independência nos anos da Guerra Fria*
Porto Alegre foi sede dos Jogos Mundiais Universitários (Universíade-63) no ano de 1963. Foi a primeira vez que esses jogos foram realizados fora do continente europeu. Em um mundo bastante dividido pela lógica da Guerra Fria realizar um evento esportivo que congregasse atletas dos dois blocos econômico-sociais em disputa era uma grande atração, despertando muita curiosidade.
Não se passara um ano ainda do evento mais quente da Guerra Fria: a Crise dos Mísseis. O mundo vivia o pavor de uma guerra nuclear iminente. E no Brasil isso não era diferente. Mas ao mesmo tempo em que o medo espraiava-se entre as pessoas, o esporte era capaz de proporcionar momentos de alegria e de congratulação entre os povos. Uma competição esportiva como a Universíade-63 despertava paixões, tanto pela prática desportiva quanto pelo sentimento de patriotismo.
O ano de 1963 no Brasil foi um ano de fortes embates político-ideológicos. Em 06 de janeiro houve o Plebiscito no qual a população optou pelo retorno ao sistema presidencialista de Governo. As posições dos maiores partidos políticos se modificavam em processo acelerado. O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) se radicalizava cada vez mais à esquerda, tendo no discurso nacional-reformista seu mote.[1] O Partido Social Democrático (PSD) até então seu tradicional aliado no tempo da experiência democrática (1945-1964) estava em processo de distanciamento político em direção à União Democrática Nacional (UDN), agremiação de cunho liberal-conservador situado à direita no espectro político do período.
No Rio Grande do Sul assumia o Governo do Estado o pessedista Ildo Meneghetti. Destoando da política brasileira, a política gaúcha há muito já expressava o fenômeno de um PSD udenizado.[2] A tradição da bipolaridade política gaúcha se acentuava ainda mais numa conjuntura internacional também bipolar. No entanto, trazer a Universíade-63 para Porto Alegre se não foi um momento de trégua política, pois os ânimos assim não o permitiam, foi um período de tolerância.
A origem dos Jogos Mundiais Universitários
Os Jogos Mundiais Universitários – Universíade – foram realizados em Porto Alegre , no sul do Brasil, no ano de 1963. A Universíade nasceu de um esforço conjunto entre as duas grandes entidades do esporte universitário no mundo: a Federação Internacional do Esporte Universitário (FISU– Federation International Sport University) com sede em Paris e a União Internacional dos Estudantes (ISU – International Students Union) sediada em Praga. Ambas entidades foram fundadas em 1949 e tinham origens em entidades esportivas fundadas na década de 20 que não conseguiram se manter no período da Segunda Guerra Mundial.
Nessa época a FISU organizava as disputas esportivas entre os países capitalistas e a ISU entre os países socialistas, havendo ocasionalmente participação de algum país de um bloco numa disputa patrocinada pelo outro.
Em 1957 a Federação Francesa de Esportes Universitários organizou o Campeonato Mundial de Esportes Universitários, que reuniu estudantes dos dois blocos em que o mundo via-se dividido. Embora tenha sido uma disputa de pequenas proporções, ele acabou dando estímulos para a realização de um grande campeonato, no qual pudessem participar livremente e em grande número atletas das duas formações sociais existentes.
No ano de 1959, FISU e ISU concordaram em participar dos jogos organizados em Turim pela Associação Italiana de Esportes Universitários. A Associação Italiana de Esportes Universitários batizou esses jogos de Universíade, uma derivação das palavras Universitàrio e Olimpìade. Participaram desse certame 43 países e mais de 1400 atletas. Foi também estipulado nessa edição uma bandeira em forma de U para representar o evento e a elaboração do estatuto da FISU, que a partir desse momento englobaria as duas entidades e passaria a ser responsável pela continuidade dos Jogos Mundiais Universitários. Afinal, o esporte, segundo Carraveta, “entendido como jogo competitivo, se encontra em todas as sociedades, é um dos poucos conceitos culturais universais da humanidade” (CARRAVETA, 1997, p.24). No Estatuto da FISU, no seu artigo 2º lê-se: “A FISU persegue seus objetos esportivos e fraternos, sem consideração ou discriminação política, religiosa ou de natureza racial” (BOLETIM DA UNIVERSÍADE 63, Porto Alegre, nº 01, agosto, 1963).
Pensando e agindo
Era preciso um grupo forte e coeso para organizar os Jogos Mundiais Universitários. O trabalho era grande, o tempo pequeno, e o dinheiro curto. Mas os jovens universitários gaúchos não se intimidaram. Montaram um comitê e deram início aos trabalhos. O Comitê Executivo era formado por Henrique Halpern, Edgar Laurent, Darci Votto de Araújo, Adonis Escobar e Carlos Alberto Giulian. O diretor técnico foi Luiz Augusto Bastian de Carvalho. E para o Comitê Organizador foi escolhido o Sr. José Antônio Aranha, Secretário da Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul e representante direto do Governador Ildo Meneghetti (BOLETIM DA UNIVERSÍADE 63, Porto Alegre, nº 1, agosto, 1963).
O país estava vivendo séria uma crise financeira.[3] Não havia muitos recursos destinados para a organização dos Jogos Mundiais Universitários. Eles ocorreram no mesmo ano dos Jogos Pan-Americanos de São Paulo, onde tinha sido destinado um montante elevado de verbas federais. A solução foi recorrer ao Governo do Estado, na figura do conservador Ildo Meneghetti.
O Governo do Estado do Rio Grande do Sul procurou dar todas as facilidades para os organizadores. Prova disso é a Ordem de Serviço – número 27– de 21 de agosto de 1963: O GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL determina a todos os órgãos da administração estadual, inclusive autárquicos, seja dada prioridade na solução das solicitações feitas pelo Presidente do Comitê da Organização da Universíade 63, Doutor JOSÉ ANTÔNIO ARANHA. O PALÁCIO PIRATINI, em Porto Alegre , 21 de agosto de 1963 (KOCH, 2003, pp. 33).
Mas a cidade não estava preparada para receber um evento desse porte. Havia muitas melhorias a serem feitas. O prefeito de Porto Alegre, Loureiro da Silva, determinou que a Divisão de Limpeza Pública mantivesse em dia toda a Radial Leste, zona compreendida pelas ruas Ramiro Barcelos, São Luís, Luís de Camões e Avenida Ipiranga, área próxima onde estava sendo construído o ginásio que serviria para os jogos de basquete e vôlei da Universíade. Também determinou que a Rua da Praia e adjacências fossem limpas e tivessem o calçamento restaurado. Além disso, pedia providências para que todos os pontos turísticos da cidade recebessem um tratamento especial. Afinal, a ocasião seria uma grande projeção para a cidade. E não se poderia perder essa oportunidade (CORREIO DO POVO, 11/08/63, pp. 25).
A cidade acolhe os Jogos
No início da década de 1960, Porto Alegre era uma cidade em constante crescimento urbano. Mas ainda não tinha um parque esportivo suficientemente grande para abrigar uma competição como os Jogos Mundiais Universitários. Essa era uma das grandes questões a ser resolvida pelos organizadores da Universíade-63.
Conseguiram o compromisso do Governo do Estado, através do Secretário da Fazenda e diretor do Comitê Organizador, José Antônio Aranha, para a construção de um ginásio. Foi construído, em tempo recorde, 94 dias, o maior ginásio esportivo do sul do país, com capacidade para 10000 pessoas. Foi batizado Ginásio Universíade e hoje é conhecido como Ginásio da Brigada Militar.
As competições de atletismo, que acabaram sendo o ponto alto dos Jogos Mundiais Universitários, foram realizadas no Estádio Olímpico, do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense.[4] Para a competição de esgrima houve uma inovação. Foram aproveitados os Armazéns A e B do Cais do Porto, que estavam desativados e sem uso. Os jogos de basquete e vôlei foram realizados no recém construído ginásio. As provas de ginástica, natação e saltos ornamentais foram realizadas no Grêmio Náutico União. Os jogos de tênis na Sociedade Leopoldina Juvenil e o pólo aquático no Petrópole Tênis Clube.
Sobre o Esporte e a Civilização nos tempos da Guerra Fria
O mundo estava dividido naquele início da década de 1960. Era o auge da Guerra Fria e os países do globo acabavam alinhando-se as duas superpotências de então. No entanto esse alinhamento era muito mais favorável as superpotências do que aos países alinhados, pois a Guerra Fria era uma constante dominação sobre os povos e as economias locais.
No Brasil, a Política Externa Independente procurava uma nova forma de relacionar-se com os demais países do globo. E uma forma de atração a esses países, com vistas comerciais e econômicas, poderia ser o esporte. Não há fator de aglutinação social melhor do que o esporte. O esporte é uma referência positiva em qualquer sociedade, seja ela capitalista ou socialista. É através do esporte e do ideal olímpico que se adquire o “homem completo”.
Havia uma alternativa a mais então para os planos da Política Externa Independente: patrocinar em terras brasileiras uma competição esportiva de nível mundial. Por isso que foi trazida a Universíade-63 para o Brasil. Através dela se conseguiria uma excelente divulgação do Brasil para o restante do mundo. Afinal, a Universíade tinha todas as características de uma Olimpíada. O mundo estaria com suas atenções voltadas para o Brasil, o que constituiria um marco interessante para novas relações comerciais internacionais.
Desse modo, houve uma intencionalidade por parte do governo, especialmente o Governo Jânio Quadros, na busca da Universíade para o Brasil. Através dela, seriam favorecidos os contatos para novas relações comerciais com outros países, mesmo que ideologicamente diferentes do Brasil.
Mas por que Porto Alegre sediar esses Jogos? Porto Alegre estava em um momento particularmente privilegiado. Por terem sido realizados no mesmo ano os Jogos Pan-Americanos em São Paulo , a grande metrópole estava descartada de qualquer possibilidade de sediar a Universíade-63. Minas Gerais tinha um belíssimo estádio, há pouco construído, o Mineirão. No entanto, não teve força política suficiente para garantir a conquista. Porto Alegre teve. Suas entidades de esportes estudantis tinham peso político com as entidades nacionais. A cidade queria o evento. E o Governo do Estado investiu de forma pesada para viabilizar os Jogos Mundiais Universitários. Mesmo sendo um governado de oposição ao governo central do Brasil, o Governador Ildo Meneghetti viu na idéia dos Jogos um forte componente político. Para ele era uma boa forma de promoção. Tratou de pôr a estrutura do Estado a favor da Universíade, contando inclusive com ativa participação do Secretário da Fazenda do Estado na realização dos Jogos.
Para a cidade foi bom. Ela esteve no centro do mundo por alguns dias. Estabeleceu relações sociais com pessoas de diferentes procedências, o que foi muito enriquecedor para parte da população que pode se integrar ao evento. E também foi bom em termos econômicos, pois os atletas e membros da imprensa mundial fizeram muitos gastos aqui, e uma propaganda positiva da cidade para o mundo. Além disso, a cidade ganhou importantes espaços de integração esportiva, sendo o maior deles o Ginásio Universíade.
Por fim, através da Política Externa Independente, que mesmo não atingindo plenamente suas ambições por particularidades históricas bem conhecidas, o Brasil se integrou ao mundo e ajudou na busca pela paz, pelo congraçamento dos povos e, se não houve o crescimento econômico almejado e sua indispensável distribuição de renda, ao menos houve uma história de luta pela igualdade, de resistência e de não-subordinação àqueles que há muito nos exploram.
FONTES PRIMÁRIAS
Boletim da Universíade-63. Porto Alegre, Números 01, 03,04. Agosto e setembro de 1963.
Jornal Correio do Povo, Porto Alegre, edições de agosto e setembro de 1963.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARRAVETA, Elio Salvador. O Esporte olímpico. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1997
DOMINGOS, Charles Sidarta Machado. O Brasil e a URSS na Guerra Fria: a Política Externa Independente na Imprensa Gaúcha.
FONSECA, Pedro Cezar Dutra. A crise do Governo Goulart: uma interpretação. In: Encontro Nacional de Economia Política. Anais [recurso eletrônico]. Uberlândia: SEP, 2004, 28p.
KOCH, Rodrigo. Universíade 1963 – História e resultados dos Jogos Mundiais Universitários de Porto Alegre. São Leopoldo: Editora da Unisinos, 2003.
NOGUEIRA, Maristel Pereira. Universíade de 63: reconstrução da memória através da perspectiva dos jornais. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado, PUCRS, 2004.
TRINDADE, Hélgio; NOLL, Maria Izabel. Rio Grande da América do Sul: Partidos e eleições (1823-1990). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1991.
* Este texto é uma síntese do artigo publicado no número 4 da Revista Monographia da FAPA. www.fapa.com.br/monographia
** Professor de História no Instituto Federal Sul-rio-grandense – Campus Charqueadas.
[1] O projeto político do presidente João Goulart pode ser descrito como tendo caráter nacional-reformista em razão de pugnar a interferência do Estado na realização de reformas sociais, políticas e econômicas, visando ao desenvolvimento do país. Para esse fim foram importantes a sistematização da Política Externa Independente, a criação do 13º salário, o Estatuto do Trabalhador Rural – que levava os direitos sociais aos trabalhadores do campo –, a Lei da Remessa de Lucros (que limitava o envio de capitais para o exterior) e a criação da Universidade de Brasília (UNB) e Eletrobrás.
[2] Conforme Hélgio Trindade e Maria Izabel Noll, o Estado do Rio Grande do Sul, desde a Guerra Farroupilha (1835-1845) tem uma conformação política assentada em um sistema multipartidário de polarização. No pós-1945, essa confrontação se dará entre o PTB e o anti-PTB (TRINDADE; NOLL, 1991, p. 68-81).
[3] Conforme Pedro Fonseca os índices de inflação para os anos de 1961, 1962, 1963 eram, respectivamente, de 47,8%, 51,7%, 79,9%. Em 1964 o índice chegou a 92,1% de janeiro a dezembro (FONSECA, 2004, p. 1).
[4] A denominação Estádio Olímpico Monumental foi dada em meados da década de 1970, quando na gestão de Hélio Dourado foi construído o anel superior do estádio que seria palco de grandes conquistas na década de 1980.
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